domingo, abril 01, 2012

Quatro Quartos

“Isto está mau, está…”. Quantas vezes nós já ouvimos este queixume?
Tudo é relativo.
Está mau?
Não, ESTA é que é a ocasião certa para dizer “está mau”:

Estávamos em 10 de Abril de 1983, jornada 25 do campeonato. Dilúvio de proporções bíblicas no quintal de Vidal Pinheiro. A casa do Salgueiros. Sem relva. Sem cobertura. Sem bancadas. Apenas um mar de chapéus-de-chuva em redor dos muros cerceados com arame farpado ferrugento e uns prédios à ilharga. Aqui jogava-se futebol de primeira divisão, com abnegados profissionais meio-futebolistas, meio-comandos. O oponente: o fugaz Alcobaça, o Felgueiras dos anos 80 no que à divisão-mor concerne. Isto era o nosso futebol de primeira, a duas décadas de distância do Euro 2004. Onde mesmo as marcações do campo pareciam imaginárias, havia guarda-redes chamados “Barradas”, contusões e caneladas com fartura e onde discernir um golo ao longe assemelhava-se à árdua tarefa de encontrar um sapo num charco em forma de campo de futebol. 
Agora está mau? Pois sim. Quem lhes dera uns equipamentos tão janotas como os da Olympic em 1996. Era como tirar um saco de serapilheira ensopado de cima para vestir um prêt-à-porter parisiense. Quem lhes dera um Adelino Ribeiro Novo em 1991. Era quase como mudar-se de um T2 na Arrentela para um T3+1 na Lapa. 
Tudo neste filme de terror disfarçado de resumo de jogo de futebol assume proporções cataclísmicas, denota-se um esforço sobre-humano para resistir ao caos daquele jogo tornado batalha. Há um enorme suspense até descobrir quem vai perder uma perna no lamaçal ou quem irá rebolar pelas encostas contíguas ao campo até bater com a cornadura no muro cá em baixo. Até o comentário ao resumo é confuso e dessincronizado, admitindo logo ao início que “as condições eram muito más”.
Era assim em 1983. Parecia tudo tão diferente, mas afinal o FMI também por cá andava, tal como agora.

Podia dizer-se, “ah e tal, mas aposto que os grandes não engoliam esses grupos, mudavam logo um jogo desses para a Maia ou para Torres Novas ou para o Algarve e furtavam-se aos pelados”. Mas nem por isso.
Estávamos em 18 de Janeiro de 1987 e jogava-se os dezasseis-avos de final da Taça de Portugal. O recinto: Campo Engº Carlos Salema, em Marvila, Lisboa, casa do Oriental, o grande rival do Atlético para saber afinal quem é o 4º grande lisboeta. Uma caixa de fósforos na Azinhaga dos Alfinetes toda engalanada neste dia. Alegria e emoção numa tarde solarenga de Inverno, com bancadas, colinas, postes de iluminação, casotas abandonadas e varandas todas repletas, nem o Gabriel Alves resistiu ao encanto da Festa da Taça. O Oriental, embora mais habituado a derbies de grande fervor com o SL Olivais, Olivais e Moscavide e Sacavenense, militava na antiga II Divisão que então fazia cócegas à I Divisão e recebia o venerado Sporting de Peter Houtman, Oceano e Virgílio. Quase que havia tomba-gigantes. E também houve um grande tombo, mesmo em cheio no pó de Marvila. E não foi um artista qualquer. Foi Mozart, o génio da música a estatelar-se ali num espaço não marcado, raspando os joelhos na gravilha em busca da derradeira sinfonia do penalty. O árbitro não tinha bom ouvido nem bom olho. Apontou livre. Quim não se fez rogado e escreveu um pequeno hino ao futebol direito por linhas que não existiam, compondo assim um “minor hit” para a popular agremiação lisboeta. Que saiu de cabeça erguida – mas não muito, que aquelas vedações também não eram muito altas.

Pegando no Sporting e avançando mais um ano, é com prazer que assistimos à apresentação da equipa para a época 1988-89, o Verão de Jorge Gonçalves. Neste trabalho quase familiar de Miguel Prates, que passeia-se quase despercebido por balneários e em redor de vários homens em tronco nu, é feita uma descrição individualizada das famosas “unhas do leão”: o bigode convicto de Carlos Manuel, a timidez de Miguel, a natural surpresa de Rui Maside, o estilo mariachi de Rodolfo Rodriguez, a boa onda de Douglas e a ambição de Silas. Lamentavelmente, Eskilsson, que já tinha sido apresentado há algum tempo, atrasara-se. Mas ainda assim, todo o contexto é muito bom. Há calças às riscas, pólos inenarráveis e um desfilar de meias brancas sem paralelo; um parque automóvel composto por Nissans Datsun, Opéis Kadett e Renaults 5; a figura do “supervisor”; o bigodão sapiente do preparador-físico Roberto Portela; e, last but not least, Jorge Gonçalves himself a exortar o plantel a passar na secretaria para receber os seus contos de réis em atraso e a comunicar publicamente e in promptu a estratégia do clube em termos de gestão de tesouraria, tudo com uma frontalidade desarmante.

Também neste Verão, Aveiro voltava a respirar os ares de primeira. Silva Vieira faz de nosso cicerone na viagem ao mundo encantado do Beira-Mar 1988-89. Alinha os reforços e apresenta-os um-a-um. Vamos poupar-vos a detalhes; vejam vocês mesmos a autêntica passerelle de moda bem típica dos anos 80 em pleno Mário Duarte. Só vos avisamos que tem o Paquito, o Barradas que vimos ali em cima a enlamear-se pelo Alcobaça e um jovem Zé Ribeiro, entre outros exemplos de mau gosto estético francamente embaraçosos nos dias de hoje, dominados que estamos pela cartilha de “gel + tatuagens + mostrar as boxers por trás = muito cool”. Mas não tem o Abdel Ghany, o 1º egípcio a sair de casa, e logo um super-egípcio, segundo o presidente babado; nem o Bira/ Vira, um avançado que promete trocar os olhos aos defesas mais do que Silva Vieira troca as consoantes. Contas feitas, qualquer estilista que veja este vídeo pode ter pesadelos durante vários dias a fio.

1 comentário:

Anónimo disse...

Que cápsula do tempo. Mas "naquela altura é que era"!

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